Quando o futebol de um país é movido exclusivamente pelo clubismo, não há volta atrás. Portugal está cada vez mais envolto numa profunda caverna mediática em que a discussão do jogo passou para um distante centésimo plano bem atrás de todas as trifulcas futebolísticas dos agentes mais polémicos da praça. A derrota do SL Benfica em Braga e o grito mediático que se montou imediatamente após o final do jogo apenas confirma que o futebol português merece mesmo um ensaio sobre a cegueira.
O adepto de futebol português é tudo menos um adepto de futebol.
Clubismos há nos quatro cantos do Mundo mas neste rectângulo inexpressivo ganha proporções perigosas. E sedantes. Ao contrário de outros países de fanáticos, em Portugal a discussão do jogo deixou de fazer sentido. Não há um único bom livro sobre futebol escrito por um autor português. Não há - nos vários programas televisivos dedicados ao jogo - nem uma rubrica que se centre nas questões tácticas, sociais, económicas ou politicas do beautiful game. E o adepto comum é capaz de saber de cor o nome do árbitro de um qualquer jogo da liga 1989/1990, mas dificilmente saberá citar as equipas finalistas do mundial de 1970 (para por uma pergunta fácil). Isso é o espelho claro de uma ausência de cultura desportiva que se é gritante em desportos pouco ou nada mediatizados - e onde Portugal e os seus representantes até apresentam, por vezes, bons números - se torna evidente no caso do futebol. Não há imprensa desportiva portuguesa. Há jornais "não oficiais" associados a este ou aquele clube (mudando algumas vezes de camisola, como esteja o mercado). Não há programas desportivos. Há tertúlias onde figuras públicas que nada têm a ver com o jogo debatem tudo menos a beleza da bola a rasgar o tapete verde. Os estádios primam pela ausência de público. Os horários das múltiplas transmissões televisivas são tudo menos amigos dos adeptos e o clima de suspeição que se cria à volta do jogo é de tal forma asfixiante que garante - independentemente do resultado final - que não passará uma única semana sem que se sirva uma nova polémica. Reais ou imaginárias, acaba por ser irrelevante. O adepto português percebe mais da lei de fora de jogo (ou isso crê) do que das transições ofensivas da sua própria equipa. Mesmo que tenha visto todos os jogos durante anos a fio. Sabem a rua onde moram os assistentes mas desconhecem tantas vezes a posição de origem de muitos dos jogadores da sua equipa. E preocupam-se tanto com os resultados dos seus rivais que às vezes até se esquecem dos seus próprios. É uma cultura negativa, invejosa e profundamente hipócrita. Um espelho da sociedade.
A sociologia sabe que o futebol é hoje uma das melhores formas de tomar a temperatura a um país.
Portugal é um caso clínico de cegueira diária. Cegueira clubística capaz de criar autênticas realidades paralelas onde todos parecem viver. Cegueiras morais, deturpando valores absolutos por oportunismo clubístico. E uma cegueira económica que conduz, rapidamente, o futebol português para a extinção. Numa semana em que a FIFA ameaça - uma vez mais - com suspender o futebol luso não há uma única voz de preocupação. Tudo está centrado no dia a dia do clube. Nas constipações dos jogadores, nos erros de português dos técnicos, nas suspeitas dos elementos de arbitragem. Para o adepto português a época está definida à partida e cabe à sua equipa contrariar os poderes dominantes. A ideia é a mesma para todos os adeptos, só mudam os rostos no alvo. A derrota do SL Benfica em Braga, depois de um jogo monótono e onde a estratégia do técnico encarnado falhou desde o principio, voltou a deixar os podres do futebol luso bem à vista. A equipa da Luz que vinha de uma notável e merecida série de 18 vitórias consecutivas em todas as provas não aguentou o cansaço físico de muitos jogos decididos no limite das forças físicas (e mentais). O Braga, depois do brilharete da época passada, jogava com orgulho de bater os que o privaram do primeiro titulo. No meio de um jogo tenso um soco de um jogador benfiquista - Javi Garcia - no peito de um arsenalista - Alan - que tinha acabado de cometer falta ao rival determinou um antes e um depois. Não no resultado. Mas na mente dos adeptos. De um lado da barricada - o encarnado - e com o habitual apoio retórico da equipa directiva - um habitué nos meandros do futebol português - voltou-se aos gritos das primeiras jornadas do titulo vendido e empacotado ao eterno rival, o FC Porto, e à corrupção no futebol luso. Ninguém se lembrou desse discurso durante a série de vitórias - algumas das quais com decisões discutíveis até - e foi preciso a derrota para voltar a levantar a habitual politica de choro dos derrotados em Portugal. A imprensa desportiva fez eco da contestação encarnada, aliando pelo mesmo diapasão, resumindo a um lance toda uma temporada. Curiosamente a mesma imprensa, no ano anterior, tinha-se esquecido de um lance bem mais grave no estádio do clube da capital que poucos viram (mas como passa com Woodstock, todos dizem ter lá estado). A cegueira é selectiva e profundamente clubística e também se vive do outro lado. Os ataques injustificados dos adeptos bracarenses aos jogadores rivais, atirando vários objectos para o relvado, não diferenciou em muito o comportamento de outros adeptos noutros estádios com outros rivais. O civismo cegado pelo poder mediático do confronto de clubes voltou a demonstrar que o futebol português não consegue exibir um nível moral superior a uma discussão de faca e alguidar. Responsabilidades repartidas entre agentes, imprensa e o próprio público que, no entanto, parece estar satisfeito com o modelo desportivo em que vive. Na ressaca da polémica as posições extremam-se, as questões realmente graves (ausência de futebol de formação, falência de clubes, ausência de público, debilidades técnico-tácticas da maioria dos jogadores da competições) voltam a desaparecer na penumbra das acusações e dos insultos.
Os títulos vendidos e comprados, os adeptos fanáticos, os dirigentes com largo historial criminal - com ou sem confirmação judicial - os técnicos provocativos que transformam os saudáveis "mind games" em ajustes de contas pessoais e o vitimismo selectivo da imprensa continuam a fazer do futebol português um paciente em estado comatoso. Mas talvez, no meio de tudo, a verdadeira culpa a tenha o adepto comum que aceita - particularmente hoje com tanta facilidade de informar-se e conhecer outras realidades - entrar neste jogo. Mais, que defende a capa e espada uma filosofia de vida onde o confronto define o jogo que devia resumir-se na perfeição dos ângulos geométricos traçados a régua e esquadro e que acabam caprichosamente no coração de uma qualquer rede numa qualquer baliza num qualquer estádio desse perdido país chamado Portugal.