Na Luz as formas sempre foram traiçoeiras e as suspeitas sobre a verdade desportiva um fantasma, que pairava sobre o tapete verde por onde brilharam alguns dos maiores jogadores da história do futebol luso, qual a desaparecida águia Vitória. A manobra da direcção encarnada para facilitar a passagem dos encarnados à próxima fase da Taça de Portugal resume toda a falta de ética que faz do futebol português um doente terminal com pouca esperança de recuperação.
O segundo melhor ataque do futebol português, enrabietado por uma série de vitórias consecutivas, media-se à segunda melhor defesa da prova numa eliminatória atrasada da Taça de Portugal. Como ultrapassar tão espinhoso obstáculo sem suar em demasia?
A resposta encontrou-a, antes de Jorge Jesus, a direcção encarnada. Dias antes do duelo da tão propalada "festa da Taça" a imprensa especializada começou a anunciar o interesse dos encarnados na figura central da defesa algarvia. Táctica velha em Portugal, com o Benfica como habitual protagonista (mas não só), e que visa tanto desmotivar o rival como empolgar os adeptos/leitores. Se o caso ficasse por aí, como tantos outros, o mal seria menor. Afinal, a fortaleza mental continua a ser condição sine qua non para ser-se um bom jogador. E o central brasileiro Jardel, não confundir com a eterna promessa por cumprir da direcção encarnada, é-o ou, pelo menos, tem demonstrado sê-lo com inusitada regularidade nesta temporada. Mas o caso foi mais longe, tristemente mais longe. E definiu um jogo que estava ganho antes sequer do apito inicial.
Jardel, convocado pela equipa técnica e previsivel titular, foi retirado da lista de titulares do Olhanense a meio da tarde. A direcção encarnado reuniu-se pela manhã com a homóloga algarvia e decidiu avançar para a contratação do jogador. A poucas horas do duelo directo entre ambos. E cometeu assim um dos actos mais anti-desportivos de que há memória no futebol luso. Mas que não é único e que, afinal, sucede a outros casos passados, quase todos curiosamente na Luz, como os do academista Marcel ou o lateral Jorge Ribeiro sem esquecer o mais recente dos casos. Fábio Faria, titular no jogo do titulo pelo Rio Ave na passada época quando já tinha lugar assegurado no clube encarnado para...o dia seguinte. Uma realidade que nem o técnico do Olhanense, Daúto Faquirá, soube contornar quando recebeu a informação de que o seu jogador mais vezes utilizado não jogava por motivos de força maior. Ele há coisas...
O Benfica venceu na primeira parte com facilidade uma equipa desmoralizada e descaracterizada.
Os algarvios até já tinham perdido na Luz para o campeonato mas, desta feita, nem tiveram opção a apresentar batalha e os encarnados continuam assim a corrida ao único troféu de prestigio a que podem optar no final da época. Uma velha obsessão de Jorge Jesus que agora terá de se medir ao Rio Ave para seguir na peugada do Jamor. Onde poderá encontrar-se, de novo, com o FC Porto, que resolveu com serviços minimos a última equipa dos campeonatos da Federação na prova.
O futebol português continua assim a viver um duopólio que, quando não resolvido no relvado, é resolvido fora dele. Independentemente de cortar com todos os laços da ética desportiva. O Benfica tem todo o direito a optar a um jogador, o Olhanense (e a Traffic Sports) todo o direito a vender. E Jardel em aceitar saltar de bando. Nada a dizer.
Mas realizar uma operação destas a meia dúzia de horas de um jogo decisivo para ambos e impedir assim, sem margem de manobra, que uma equipa actue como tinha previsto, destruindo à partida os planos tácticos do visitante é, no minimo, anti-desportivo. Se a justiça desportiva existisse, em realidade, até podia ser criminal. Afinal não foi na Premier League que um clube foi multado por alinhar jogadores poucos habituais contra um dos candidatos ao titulo num jogo a meio de semana? Se na Old Albion isso - que no fundo é uma decisão táctica do técnico - é punível, imaginemos o que seria uma situação similar num campeonato a sério, com leis a sério e com uma cultura desportiva verdadeira?
A actuação da direcção encarnada, a mentalidade pequena da direcção olhanense e a conivência das autoridades que regulam a prova (leia-se Federação Portuguesa de Futebol, ela também a viver na maior das ilegalidades) diz muito sobre o estado comatoso da moral do futebol luso onde tudo vale para ganhar. E onde todos apontam o dedo uns aos outros para passar a mensagem de que o pecado do rival lava o meu pecado. Os adeptos benfiquistas lembrar-se-ão certamente disso na hora de se defender. Não sabem como fazê-lo doutra forma. Porque não há, realmente, outra forma.
Jardel irá para o Benfica, como foram Marcel, Jorge Ribeiro e Fábio Faria (e tantos outros nomes no passado recente e distante) e é bem possível que não volte a jogar até ao final do ano. Nestes negócios de ocasião o futebol português é perito em validar contratações ou empréstimos que funcionam mais como manobras de controlo de bastidores do que necessidades futebolisticas. A falta de valores aliada à falta de qualidade de jogo faz da Liga Sagres (e das restantes provas menores) um dos campeonatos menos interessantes e captivantes do Velho Continente. Salvando-se as honrosas prestações europeias da última década (os anos de ouro do FC Porto, a final europeia de Sporting, os êxitos inesperados de Boavista e Braga), o futebol português é hoje um doente apestado em modo terminal. A bola tem a sua própria ética. Em Portugal ninguém parece importar-se muito com isso.