Exibição de gala europeia merengue era algo há muito não visto. O Real Madrid repetiu o melhor arranque da prova que data de 2003/2004 e espanta os fantasmas das decepcionantes campanhas recentes. Tudo obra e graça de um treinador que chegou com o rótulo de técnico defensivo e calculista e que vai armando, a pouco e pouco, uma equipa de primeiro plano internacional. O dedo de Mourinho já faz girar a Castellana...
Os mais criticos, porque sempre os há, passaram o último mês a contar as horas para o duelo de ontem, no Santiago Bernabeu.
Defendiam que o renascido Real Madrid funcionava com equipas de baixo perfil (leia-se Real Sociedad, Deportivo e Málaga), mas que ainda não tinha tido um rival à altura. E o AC Milan era-o, nem que fosse, pelo nome. Ou só por isso.
A resposta no terreno de jogo foi conclusiva e não deixa lugar a dúvidas. Em quatro meses de trabalho o português José Mourinho revolucionou o futebol do gigante espanhol. A sua fórmula de trabalho já se nota em todas as linhas e apesar de ter ainda muito que trabalhar, o sadino pode estar satisfeito. A adaptação e assimilação da sua cartilha foi lograda em tempo recorde. Os adeptos madridistas recuperaram a velha ilusão de grandeza que o último Barcelona, talvez o mais completo de sempre, lhes usurpou meritoriamente nos últimos dois anos. Hoje voltam a sentir-se importantes. Grandes. Reflexo da atitude dos jogadores e da postura de um técnico que é também um lider com dons de profeta. A exibição contundente do clube branco frente aos rossonero não permite outras leituras. O AC Milan não é o gigante que já foi, é certo. Mas tem um projecto igualmente ilusionante que mistura unidades individuais desiquilibrantes por natureza (Ronaldinho, Robinho, Pato, Ibrahimovic), com um nucleo medular estoico e irrascível representado pela velha guarda do futebol italiano (Nesta, Zambrotta, Gattuso, Pirlo). Uma conjunção que encheu a moral de Massimiliano Allegri para o confronto com Mourinho. Que perdeu, naturalmente.
A cartilha de Mourinho foi demasiadas vezes acusada de defensiva. Vistas curtas chamemos-lhe.
O técnico gosta de uma defesa sólida e compacta, sem margem para o erro. Não é por acaso que é a única equipa sem golos sofridos na Champions League e a melhor defesa da Liga Espanhola (3, contra 6 dos rivais directos, o dobro). É uma equipa montada de trás para a frente, com a precisão como palavra-chave. Talvez por isso a contratação mais elogiada na ressaca do festim ofensivo tenha sido, precisamente, Ricardo Carvalho. O central português foi imperial e formou com Pepe uma dupla intransponível. Ao lado de Marcelo, que merece uma menção à parte, permitiu a Casillas passar uma noite tranquila que só teve de lidar com dois sustos pontuais. Já Arbeloa mostrou que continua a ser um elo fraco neste plantel, mas tendo em conta que é uma clara segunda opção para o eixo defensivo, não se torna realmente num problema a corrigir. A partir daí, dessa defesa sempre avançada, com os laterais rapidamente a incorporarem-se nas manobras ofensivas, Mourinho consegue encolher e ampliar o campo a seu gosto. O 4-2-3-1 com que arranca o jogo é, tantas vezes, um 2-3-4-1, com Arbeloa e Marcelo ao lado de Khedira, dando redea solta a Xabi Alonso para se juntar ao concerto ofensivo. Ou mesmo um 3-4-3 claro, com Marcelo a galgar o corredor e Xabi Alonso a fechar à direita, dando espaço a Ozil para vir atrás e começar a combinação no miolo. Durante o jogo Mourinho muda por completo a disposição da equipa. Sempre com os olhos na baliza contrária. Usa extremos puros a perna trocada - Di Maria pela direita e Cristiano Ronaldo pela esquerda - para ampliar o poder de fogo, com Higuain como pivot involuntário. Ozil tem carta branca e classe suficiente para dar outro pedigree a uma equipa a que lhe faltava um pensador natural. O alemão foi o melhor no terreno de jogo, pautando o ritmo e permitindo a exibição superlativa de todos os colegas. E se Higuain foi o de sempre, se Di Maria foi incansável a defender e tosco a atacar, Cristiano Ronaldo voltou a ser ele mesmo. É um dos três grandes méritos do técnico português desde a sua chegada ao banco do Bernabeu. O renascimento desportivo de Ronaldo é a melhor noticia para os merengues. Golos, assistências, tabelas ao primeiro toque, sprints endiabrados, jogo colectivo misturado com lances individuais. Um jogador completo, a anos-luz da imagem deixada na época passada. Os golos surgem, naturalmente, mas é nas assistências que o renascido CR7 se tem mostrado eximio. Boas noticias que o AC Milan teve de sofrer na pele com dois golos num só minuto, ambos com a chancela do português. Golo e assistência. Um hábito já.
A vitória, os 9 pontos, o melhor goal-average e a qualidade de jogo avalam o mandato de Mourinho. O técnico defensivo transformou uma equipa temerosa numa máquina de ataque. Preocupa-lhe a falta de eficácia (ainda se perdem muitos golos e bastantes passes no último terço), mas a perfeição das movimentações e a segurança defensiva são uma realidade indismentível. José Mourinho já revolucionou Madrid. O próximo passo é ir actualizando os upgrades que o programa precisa para manter o nível até ao sprint final.