Já ninguém se lembra de Tshabalala. É assim, a bola deixa de rolar e as memórias tornam-se selectivas. Cada um terá o seu Mundial na cabeça, desde o golo de Lampard que não entrou ao disparo fulminante de Iniesta. Horas depois da África do Sul ter dito adeus às últimas equipas já todos têm a cabeça em 2014. O Brasil espera e desespera, o Mundo sincroniza os relógios. O tempo vale bem mais do que parece...
É a inevitável despedida, a vida não dá nunca outra opção.
Não é um adeus doloroso, não foi para tanto. O Mundial de 2010 chegou ao fim, a ressaca da festa em Madrid, Amesterdam, Montevideo, Berlim e onde quer que estejam aqueles que vibraram com o espectáculo, também. Com o fantasma da nova época a ganhar forma, as contas para o próximo Europeu ou Copa América a ocuparem a mente de Federações e seleccionadores, durante uns dias ninguém pensará em Mundiais. O próximo, o de 2014, sob a vista maravilhosa do Pão de Açucar, parece a anos-luz de distância. Como o tempo voa. Há quatro anos Thomas Muller estava com os amigos na Fanzone de Munique a seguir o Mundial da Alemanha. Quatro anos depois foi uma das estrelas máximas do torneio. A vida é assim, repleta das mesmas surpresas que sempre nos reserva a FIFA com os seus jogos de bastidores, as suas politicas desportivas e, acima de tudo, o seu mutismo. A máxima organização futebolistica fez mais um bom negócio. Durante um mês teve o Mundo em suspenso, teve um lucro aproximado de 200 milhões de euros e a garantia de que aqueles que rogaram pragas e feitiços terão de esperar. Para eles o Mundial foi um sucesso. Financeiro, está claro. O resto sempre pareceu importar menos. Ora a Jabulani, ora as equipas de arbitragem desastradas (e até foram os europeus a ficarem pior na fotografia, antes que se fale nos árbitros do Terceiro Mundo), ora a incapacidade de oferecer um espectáculo visual interessante. A FIFA deixou o futebol de parte e desfrutou. Do som das vuvuzuelas, do desespero dos africanos com a mão de Luis Suarez - que tantos quiseram cruficiar da mesma forma que antes quiseram divinizar outra mão proíbida - ou da violência da tropa holandesa na final contra a merecida campeã.
Se a Espanha venceu o Mundial, e quem vence é sempre merecedor da glória, foi porque transformou totalmente a sua forma de estar.
La Roja sempre enviou equipas fortíssimas para as grandes competições, resultado directo de ter uma das melhores ligas e um dos mais sofisticados programas de formação do futebol mundial. Mas mentalmente eram equipas débeis. Até agora. A fúria deu lugar ao "tiki-taka" cansativo, para os rivais, pausado e cerebral. A equipa ganhou fortaleza na mente para aguentar as cargas dos rivais sem que as pernas tremessem. E para rematar os jogos no momento decisivo. Todas as vitórias da campeã foram logradas perto do fim. Quando os outros estavam cansados, distraídos, fartos de ver a bola circular de um lado para o outro, aparentemente sem sentido. Mas a frescura mental espanhola durou sempre 90, 120 minutos. O que fosse necessário. Tinham uma missão a cumprir. Não olharam a meios. Abdicaram de um médio criativo pela organização defensiva e fizeram de Sérgio Ramos um quinto médio. Não sofreram nenhum golo na fase a eliminar. Abdicaram do jogo vertical com extremos (Navas foi utilizado pouco, Pedro foi um revulsivo fundamental, mas doseado, Mata nunca contou) e horizontalizaram a bola. Até à exaustão. Até ao triunfo final. Perderam o glamour de 2008, dos cinco bajitos, ganharam a eficácia dos grandes campeões. Por isso, por terem uma geração espantosa e uma atitude irrepreensível, venceram. Não se lhes podia pedir mais.
E no entanto, fosse o Mundial um concurso de beleza, de estética, de paixão, e o titulo tinha mudado facilmente de mãos, tal foi a forma entusiasmante como a Alemanha sofreu uma metamorfose kafkiana. Se Low foi o grande responsável pela derrota no jogo decisivo, também é verdade que foi o arquitecto daquela que foi, talvez, a melhor equipa a pisar um palco mundial desde a França de 1998. Uma equipa refrescante, hábil no contra-golpe, jovem, disciplinada e letal. Humilhar duas equipas, sobrevalorizadas é certo, como a Inglaterra e Argentina, não está ao alcance de qualquer um. Ozil, Muller, Khedira, Neuer, Boateng, Kiesling, Marin, Kroos e Schweinsteiger sabem que têm tempo. A sua hora ainda não tinha chegado, mas ninguém duvida que aqui há matéria prima para dominar o futebol europeu da próxima década.
Num Mundial onde as individualidades desapareceram à minima sombra, de onde só Messi pode gabar-se de ter tido momentos futebolisticos de qualidade, entre as estrelas dos anuncios e campanhas publicitárias, os anónimos e subvalorizados, foram as verdadeiras estrelas. De Fórlan a Honda, de Vera a Lugano, de Salcido a Coentrão, jogadores sem pedigree de vedetas mas com o estofo de futebolistas que faltou às expedições francesa, inglesa ou italiana, por exemplo.
Um Mundial que também foi dos técnicos, sem no entanto ter sido uma prova de revoluções tácticas significativas. Tabarez era o técnico que menos recebia (menos só mesmo o fantasma da Coreia do Norte) e o que mais conseguiu, recuperando o prestigio histórico de uma selecção que os mais novos desconhecem por absoluto. Vicente del Bosque soube fazer, como Roger Lemerre em 2000, uma transição tranquila e eficaz como sucessor de um polémico mas visionário técnico. E "el loco" Bielsa provou que morrer agarrado aos seus ideais não deixa de ser uma morte triste e dolorosa. Maradona e Dunga também souberam o que isso é, voltando para casa pela porta pequena, mais o brasileiro do que o argentino, e deixando antever as grandes dúvidas que assaltam a próxima edição da Copa América. Torneio que parecia que ia dominar um Mundial que acabou por coroar o futebol europeu. Pela primeira vez desde o pós-guerra, duas finais consecutivas só com representantes do Velho Continente. Por muito pobre que tenha sido o jogo da maioria das equipas, a elite provou que está aí, no topo.
Talvez Tshabalala nunca mais seja recordado. Iniesta, esse, à muito que está imortalizado. Dois golos que abrem e fecham um prova que teve poucos grandes momentos de êxtase. Um torneio sui generis como poucos, hibrido e sem direito próprio a entrar na galeria dos inesquecíveis. Mas não deixou de ser um Mundial e, como são sempre insuficientes, eternizar-se-á na memória de quem o viveu e na mente de quem sonhará no futuro com as cores do arco-iris sul-africano sob o olhar atento de um menino espanhol a dançar o waka-waka ao ritmo do movimento de corpo de Xavi Hernandéz.