No inesquecível "Mostrengo", Fernando Pessoa exalta a coragem de um país a quem "a hora" espera na imagem de un anónimo capitão capaz de encarar o "mostrengo", na vontade que o ata ao leme, "por el-rei D. João II". Essa naus fizeram história do Mundo com a bandeira de Portugal. Hoje a nau foi ao fundo porque nunca teve um capitão assim. Nos instantes finais do jogo, quando Portugal perdia por 1-0, os marinheiros olhavam desalentados. Ao fundo o "capitão", cuspia para o chão e ajeitava as meias. O seu navio é outro. O de Portugal afundava-se. Inevitávelmente!
Acabou o Mundial para Portugal depois de um duelo ibérico que se canta nas ruas quentes de um Madrid sem metro e sem preocupações por 72 horas. Até que chegue o duelo com o Paraguai, que Villa, como o pouco gentleman mineiro asturiano que sempre foi, já anunciou que será muito mais duro que Portugal. Não fosse a virtude dos guarani a mesma dos portugueses: defender muito bem, atacar de vez em quando, marcar muito pouco. Porque esse continua a ser o grande problema estrutural do nosso futebol. Não saber marcar.
Foi o número 7 espanhol o único a quebrar a barreira portuguesa em quatro jogos. Um golo em fora de jogo evidente, aproveitando uma falha de marcação de Ricardo Costa, Tiago e Simão, mas também um genial toque de calcanhar de Xavi Hernandez, ontem de volta a si, foi suficiente. Para acabar com o sonho de uma equipa que, sejamos justos, nunca fez muito para ganhar enquanto fez tudo para não perder. Se o jogo fosse a pontos, seria fácil dizer que Portugal jogou para o empate. Apesar de lançar Hugo Almeida em campo, a mensagem de Carlos Queiroz foi clara. O avançado seria o primeiro estorvo defensivo, e não o ponta-de-lança que Portugal precisava. Defendeu quase sempre na linha de meio-campo, muitas vezes descaído para a esquerda, enquanto Cristiano Ronaldo ajeitava as meias no miolo. O número 7 de Portugal é o espelho perfeito de um jogador com tudo para singrar, menos o intelecto. CR7, ou como goste de ser conhecido para efeitos de marketing, corre o risco de se tornar num novo David Beckham. Não só porque o seu poder mediático há muito que ultrapassou o seu real poder futebolistico. As suas exibições no Mundial roçaram o sofrivel, salvando-se o jogo da Coreia, e continua a desaparecer nos grandes jogos. O homem que falhou marcar em cinco jogos contra o Barcelona, que falhou um penalty na final de uma Champions League, que marcou 27 golos na Liga Espanhola mas nenhum às equipas qualificadas para a prova rainha europeia e que, por Portugal, tem tido a brilhante média de um golo por prova, foi sempre um homem a menos. No final, espelho do desiquilibrio que reina no balneário de Portugal, culpou o seleccionador da derrota. Como há um ano fizera com o seu "mentor" Ferguson em Roma. E como sempre fará. Cristiano nunca perde. Os outros é que não o ajudam a ganhar.
Sem essa figura desiquilibrante que deveria ter sido o extremo, agora assim a jogar na banda, Portugal sobreviveu aos primeiros 10 minutos electrizantes de Espanha com apuros. A equipa entrou desconcentrada e três remates rápidos, o primeiro de Torres e os restantes de Villa, até agora o homem do Mundial junto com o alemão Ozil, deixaram claro que tipo de jogo iamos ver. No entanto a equipa das Quinas soube sacudir a pressão inicial. Fábio Coentrão, o melhor de Portugal ao largo da prova, soube fazer do seu carril uma arma secreta a explorar e foi criando desiquilibrios num meio-campo estático e criado para defender e suar. Se no lado direito a equipa não atacava, apesar de ser o ponto mais débil da equipa espanhola, pela esquerda foram surgindo várias oportunidades, desde o remate de Tiago - depois de uma boa jogada colectiva - e do livre de Ronaldo até ao centro de Hugo Almeida que Puyol quase desviava para dentro. O intervalo podia ter dado uma injecção de confiança aos portugueses que sabiam que os espanhóis estavam nervosos porque Eduardo, acima de tudo, e a defesa, mantinha a defesa impenetrável. Mas não, a equipa voltou sem chispa.
Queiroz tinha colocado de inicio Ricardo Costa a lateral direito, em lugar de Miguel, e acabou por amputar todo esse flanco. O defesa central nunca soube parar Villa nem ajudar nas transições a Simão e Tiago, duas sombras hoje no terreno de jogo. A saída de Hugo Almeida, fulcral a aguentar a defesa espanhola e a ganhar as primeiras bolas do habitual pontapé para a frente luso, e a entrada pelo inexistente Danny, foi o primeiro tiro no pé. Del Bosque leu bem o jogo e trocou o apagado Torres por Llorente e mudou o ritmo de jogo, sempre a descair pela esquerda. Por aí veio com força Espanha, por Villa e Iniesta, preciso a deambular pelo miolo com Xavi em constante associação. Foi daí que veio o golo. Um lance que atravessou todo o campo, encontrou Sérgio Ramos à direita e depois de um cruzamento onde Portugal não soube coordenar as marcações defensivas, Xavi desvia subtilmente para Villa. O primeiro remate acabou nas mãos de Eduardo, a recarga na baliza. Estava quebrada a defesa de ferro. A nau ia ao fundo.
Com esse golo esperava-se um Portugal mais acutilante, mas quem tomou controla do jogo foi Espanha.
Aproveitando várias desatenções defensivas, os espanhóis estiveram sempre mais perto do segundo golo, com o guardião do Braga a exercer, uma e outra vez, como salvador da pátria. Lançar Pedro Mendes - e não Deco - e Liedson (que não tocou na bola) foi um lance desesperado mas sem sentido. Se no relvado Ronaldo resmungava com tudo e todos sem ser capaz de driblar um só rival (que saudades de Figo naqueles momentos em que Portugal careceu, verdadeiramente, de um lider), no banco Queiroz seguia o jogo impotente sabendo que a melhor qualidade colectiva de uma equipa que se deu ao luxo de lançar o veloz Pedro para os aplausos a Villa era insuperável. Nem o toque de sorte, que sempre escapa às camisolas das quinas, nem a equipa de arbitragem, tão caseira (leia-se, "pro-espanhola"), ajudaram. A explusão ridicula de Ricardo Costa, com óscar para Capdevilla incluido, confirmaram o que se viu durante 90 minutos. Não é por acaso que Villar, presidente da RFEF, é também presidente do conselho de arbitragem da FIFA. Não foi por isso que Portugal perdeu, mas essas coisas contam e deixam perceber qual é realmente o nosso lugar no mundo do futebol.
O jogo chegou ao final com o chuveirinho do desespero, as lágrimas de Eduardo, o gesto arrogante de Cristiano Ronaldo e a euforia de uma equipa que acredita estar predestinada para entrar nos livros de história, mesmo se futebolisticamente o seu bom jogo já não tem o mesmo sabor que há dois anos atrás. Portugal pode estar orgulhoso de ter sabido negar a evidência durante tanto tempo. Uma equipa amputada de duas flechas (Bosingwa e Nani), um pensador (R. Micael) e com vários jogadores em final de carreira (Simao, Liedson, Deco, Carvalho, Ferreira), mesmo assim soube trepar o "Grupo da Morte" sem sofrer um golo e cair de pé nos Oitavos de Final. Algo que, por exemplo, a "Geração de Ouro" em 2002 não soube fazer. E apesar desta ser a década chave do futebol português, há sempre a tendência a esquecer que este foi apenas o quinto Mundial de Portugal e o terceiro apuramento da primeira fase. Nas outras duas edições chegou-se às meias-finais. Mas o potencial futebolistico de um país que abandonou a formação (ao contrário de Espanha), que não soube jogar com os emigrantes/imigrantes (como França, Holanda e Alemanha) e que continua perdido em demasiados fait-divers extra-futebol para singrar em grandes provas.
Portugal sai do Mundial como se esperava à partida, com melhor impressão do que seria expectável, particularmente do sector ofensivo. Sai, sabendo que foi uma das seis equipas europeias sobreviventes à razia deste Mundial de toque sul-americano, e olhando em frente para o ataque ao Euro 2012. Uma campanha que será marcada por três elementos chave: a rápida renovação que já se começa a verificar com jogadores como Eduardo e Coentrão; a necessária busca de um goleador eficaz e com margem de crescimento; e o inevitável afastamento de Cristiano Ronaldo, pelo menos do cargo de capitão, sob pena de que a equipa das quinas se transforme num reality show made by MTV com o CR qualquer coisa de protagonista. Até lá, o Mundo continua. Portugal volta ao nevoeiro. Pessoa fica adiado. Não era a hora!