De pensar que se é a melhor equipa do Mundo a ser a melhor equipa do Mundo vão alguma distância. 180 minutos para ser preciso. A hipocrisia cruficificará a equipa que mais golos marcou, melhor soube atacar e defender. O poder mediático define comportamentos e o gesto heróico de Mourinho, dedo no ar em pleno Camp Nou, será uma das imagens mais polémicas do ano. Na noite em que o português se fez "Divino".
Para uns o futebol são só remates à baliza, golos espectaculares, trocas de bola rápidas e artistas de rua.
Para esses ontem viveu-se uma blasfémia. Mas mesmo esses, vestidos do traje mais hipócrita, dariam tudo para que o seu clube tivesse tido a temperança de aguentar a posição como os legionários de José Mourinho. Porque o futebol, como qualquer desporto, é uma questão de vencer ou perder antes de ser um mero espectáculo. Espectáculo é no circo, dizia Helenio Herrera. Ontem José Mourinho ganhou, por direito próprio, direito a entrar no panteão dos deuses do calcio com o histórico chileno, um dos treinadores mais goleadores da história apesar da sua fama de defensivo. Tal como o luso. É preciso ter em consideração que nos últimos 25 anos só Arrigo Sacchi, Fabio Capello, Boskov, Marcello Lippi e Carlo Ancelloti lograram chegar à final da prova rainha do futebol europeu com uma equipa italiana. E que o Inter, esse gigante adormecido, não pisa uma final da prova desde 1972. Há 38 anos. E isso é um feito.
Mourinho mostrou uma vez mais que é um ganhador e desta feita, ao contrário da sua etapa com o Chelsea, não houve azares de última hora ou árbitros distraidos que o impedissem de tentar repetir o feito logrado com o FC Porto. O sadino resgatou das trevas a equipa azul e branca e deu inicio a uma hegemonia que só teve comparação no futebol português com a equipa de 60-62 do SL Benfica. Com o Chelsea acabou com uma sede de mais de 50 anos de história e deu um golpe na mesa no equilibrio da Premier. Em Itália, mesmo que perca os três titulos que ainda disputa, já entrou na história.
O jogo começou antes dos 90 minutos.
A lesão de Goran Pandeev no aquecimento mudou completamente o jogo. Já se sabia que ao Barcelona cabia a despesa do jogo e que o Inter ia aproveitar o contra-golpe. Vantagem de 3-1 para gerir é renda incerta contra uma equipa habitualmente ultra-ofensiva como é o conjunto catalão. A entrada de Chivu deixou coxo o lado esquerdo do ataque. A má forma fisica de Sneijder tirou força ao contra-golpe do meio campo. E o árbitro belga destacado pela UEFA resolveu todas as dúvidas. A ridicula expulsão de Thiago Motta - com direito a um teatro impróprio para menores tão bem adestrados como Busquets - cortou qualquer hipótese de defesa ofensiva a Mourinho. A partir daí era preciso defender. O melhor ataque da Europa. O Inter abandonou o 4-3-3 por um inevitável 4-4-1. Que, com o passar do tempo, se tornou em 4-5-0. No banco não havia opções neste plantel feito de remendos e espremido até ao limite.
O Barcelona viu então a oportunidade de entrar pela via verde. E preferiu tomar um desvio pela antiga nacional. Em 180 minutos Mourinho mostrou todas as debilidades de Guardiola como técnico. Algo que demorou dois anos a suceder. O técnico, cavalheiro como poucos até agora, deixou-se levar nos jogos mentais do português. E tacticamente esteve irreconhecível. Lançou Maxwell para o lugar do improvisado Milito, a defesa-esquerdo. Mas manteve Messi no centro do terreno, onde esteve, como sempre, irreconhecível. O "melhor do Mundo" não teve uma oportunidade contra o Inter. Mais uma licção do português que já tinha sabido parar várias vezes a Cristiano Ronaldo em Inglaterra. Sem nunca recorrer a uma marcagem ao homem.
Com Ibrahimovic parado no meio dos centrais, o Barça nunca procurou esticar o jogo. Esbarrou com um muro montado de forma perfeita. Um jogo imenso do conjunto italiano, sem um único erro defensivo. Sujeitos a imensa pressão, os italianos aguentaram firmes a mareante troca de bola de Xavi, Messi e Busquets. Só que estes não encontravam um milimetro de espaço. Isso também é futebol!
No segundo tempo Mourinho abdicou totalmente de atacar. Sabia não ter condições para encarar, nem que por breves momentos, o Barcelona.
Mas Guardiola voltou a errar ao lançar Jeffren e Bojan. Ou talvez não tivesse outra arma no banco? Erro de planificação de época que se começa a fazer agora que Ibrahimovic grita em silêncio contra um esquema onde não se enquadra, feito à medida de Messi e não do seu jogo de associação. O Barcelona tentava mas Julio César nunca teve realmente de se incomodar. A bola esbarrava na primeira linha defensiva. Tal como contra o Chelsea no ano passado, este Barcelona mostrou ser virtuoso apenas contra equipas que não sabem defender. Tal como Cruyff contra Capello, também Guardiola parece ser incapaz de superar o obstáculo italiano de um bloco bem montado e impenetrável.
Os dez minutos finais foram intensos. Pique, o melhor dos blaugrana, apontou um golo genial, ele que há largos minutos era já o ponta de lança improvisado. Não fosse a posição de off-side. Mais um de muitos erros caseiros de um árbitro que amarelou Julio César aos 30 minutos por atrasar um pontapé de baliza e que passou o encontro a marcar faltas estratégicas à frente da área italiana. Todas, sem consequência. Mas se em Can Barça se falou de "remuntada" toda a semana, a verdade é que nunca se viu esse espirito eléctrico nos jogadores e no seu técnico. A equipa não carregou "à inglesa", depois do golo de Pique e nunca esteve realmente perto do 2-0. O jogo acabou como se previa. Vitória do Barcelona. Apuramento do Inter.
Haverá quem goste ou não goste de Mourinho e do seu jogo. No futebol tudo é permitido, tudo é legitimo. Mas a falta de cavalheirismo do Barcelona demonstrou que o clube que encandilou a Europa nos últimos 365 dias voltou a cair em velhos erros arrogantes do passado. Ligar os aspersores quando os jogadores italianos comemoram é indigno. Agarrar o pescoço de um treinador que celebra, também. De insultos e apupos, já nem se fala. O ano passado o Mundo delirou com o sprint de Guardiola em Stanford Bridge e com os festejos em Madrid, Valencia, Roma, Monaco, Bilbao e Abu Dhabi. Em nenhum momento ninguém impediu o Barça de celebrar as suas conquistas nem ninguém se lembrou de os acusar de arrogantes. Fazê-lo agora é a melhor prova de que o fair play e as camisolas da Unicef só enganam quem querem. Para se ser a melhor equipa do Mundo há que ganhar. Não basta com fazer videos promocionais e jogar um futebol rendilhado sem consequências. O Barcelona entrou nesta Champions convencido de que a ganharia por ser quem era. Sai pela porta das traseiras precisamente porque não soube ser outra coisa diferente. O futebol, como a vida, é evolução. E este Barcelona, ao contrário do Inter metamorfoseado, é uma versão muito inferior do ano passado. O Inter pode desfrutar agora do seu sonho. Il Divino merece-o.